quarta-feira, 2 de maio de 2007

A Ligação

Era uma voz inesperada. Uma voz há pouco esquecida num canto qualquer do passado, aquela que vazava, como sangue, pelos buracos do telefone. Ainda entorpecido pelo sono, chegou a pensar que fosse sonho aquela voz agora reconhecida: era ela, cuspindo palavras como se fossem pedras. Palavras num ritmo frenético, descompassado. Palavras como pequenos pássaros esmagados pelo sono. Parecia desesperada. Na certa aprontara uma das suas e não tinha outro otário para recorrer à essa hora. As palavras se perdiam. Tudo que pode anotar foi um endereço: Campos Sales esquina com General Gurjão.
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Tentou virar de lado e voltar a dormir. Voltar ao mundo do sono e do esquecimento onde ela não mais existia. Não. Não havia mais espaço para ela em sua vida. Não. Não devia pensar em nada. Mas aquela ligação… Às 3 da manhã depois de 6 meses sem noticias, sem seus olhos indecifráveis rondado a sala. Seis meses desde o dia em que ela lhe deu às costas num bar fedorento e sumiu. Não. Não. Era melhor esquecer. Voltar a dormir. Ela que se fodessse com seus problemas. Ela sempre só lhe trouxe problemas, problemas, problemas. Não. Não. Do tempo que passaram juntos quase nada restava: um livro nunca lido de Borges com uma dedicatória estranha: ”A ti, que não compreendes a tessitura efêmera da eternidade, a lâmina impiedosa rasgando a carne dos sentidos”; e uma cicatriz indelével de uma mordida nas costas. Uma cicatriz que agora voltava a pulsar como um organismo autônomo instalado em seu corpo.
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Voltou a ler o endereço. O que faria ali, em plena zona? Teria virado puta? Ou só estava novamente perdida? Novamente buscando uma vida a qual pudesse se agarrar como um parasita? Vindo dela tudo podia ser. Não. Melhor esquecer. Sim, dormir, dormir. Era perda de tempo. Ela sempre fora fluída. Sempre em fuga. Jamais seria domesticada. Era essa sua natureza: viver em fuga como um bicho afugentado. Mesmo nas horas em que estavam sozinhos no quarto ela conseguia fugir. Fugia para dentro de si e nada era capaz de trazê-la de volta, como se ela pairasse acima de tudo numa realidade paralela. Numa realidade onírica, pessoal, intransponível.
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Tentou de todas as formas trazê-la para seu mundo. Puxá-la a força para o chão. Guardá-la para si. Tentou de tudo: apresentou-lhe os amigos, levou-lhe a lugares inusitados, deu-lhe presentes, deu-se, doou-se, danou-se. Mas era inútil. Não havia o que lhe bastasse. Era como se ela ansiasse por algo intimo e imperscrutável. Algo além das coisas e dos seres. Era como uma sede insaciável. Sede do infinito. A sede dos náufragos e dos viajantes sem destino, e nada podia aplacá-la. Somente nas horas que trepavam ela deixava que algo escapasse. Algo ínfimo. Contorcia-se de prazer e o apertava forte. Rasgava-lhe as costas como se o quisesse inteiro dentro de si. E talvez fosse esse seu único intuito: queria absorvê-lo, consumi-lo em seu fogo secreto. Não. Não. Ela jamais se entregaria. Ela sequer tinha um nome. Seu nome era seu corpo. Aquele corpo que o esperava na esquina da Campos Sales com General Gurjão. Aquele corpo indecifrável, que um dia carregara em desenfreada fuga uma parte de sua alma.E o telefone voltou a tocar.

Um comentário:

Flor disse...

Olá, adorei seus textos, voce brinca com as palavras e faz um texto original, denso sem deixar q o final nos deixe párar de pensar.

Abraço