sexta-feira, 8 de junho de 2007

Por trás do nome

O velho sofá reclamou um ruído rouco quando Orimar tombou de lado feito animal abatido. Porém ela não disse nada. Com tranqüilidade fitou-lhe o rosto vermelho e um automóvel rasgou o dorso da madrugada. Sentiu o cheiro do álcool ecoar pela sala, como um cântico, e quase teve pena. Como ele era fraco. Não passava de um frágil organismo se debatendo em seu próprio fracasso, pensou vitoriosa. Voltou os olhos para os livros na estante tentando afastar o pensamento arrogante. O Crocodilo, O Idiota. Maldito Dostoiévski, pensou, sem saber o que fizera para merecer aquele destino. Em movimentos leves recolheu, com suas mãos poderosas, o copo, a garrafa, o cinzeiro. Não queria vestígios da violência da noite.

Ela não conseguia entender como podia ser tão fraco, o homem por trás do nome que cativara imediatamente. Orimar. Aquele nome transportava-a para um passado pulsante. Um passado com o cheiro de seu pai sentado na varanda da casa. Da infância entre meninos e peixes. Aquele nome reinventava as tardes que o pai tirava do armário a cachaça, trazia a vitrola para a varanda, e punha-se a beber lentamente enquanto o sol despencava na distância. Nas noites em que a lua surgia das águas barrentas do rio, e vinha pairar como um fantasma sobre os telhados, o pai tocava um compacto de Bienvenido Granda: En la orilla del mar. Então os versos de José Berroa se repetiam na voz do cantor cubano. “Luna, ruégale que vuelva/ y dille que la espero/ muy solo y muy triste/ en la orilla del mar”. Então o pai chorava, enxugava os olhos com suas mãos poderosas (mãos que pareciam não se adequarem a um trabalho tão delicado), chamava a filha para junto de si, e repetia a mesma estória.

Contava que Bienvenido Granda, El Bigode Cantante, no auge de sua carreira, fora traído pela esposa com seu melhor amigo. O cantor desesperado, teria assassinado os dois e fugido para o Brasil. Mais exatamente para Belém. Ali teria raspado o famoso bigode e terminado seus dias como garçom num hotel da capital. Depois da morte do pai ela descobrira que tudo não passava de uma estória furada. Uma mentira provavelmente contada por um marinheiro bêbado, num dos muitos bordeis das margens do Amazonas. No entanto ela repudiava a verdadeira versão da morte de Bienvenido, e defendia a versão do pai como se fosse uma herança. Um conhecimento secreto. Uma versão íntima.

Orimar. Bem mais que um neologismo criado pela supressão das letras e-n-l-a-l-l-a-d-e-l no título de um bolero antigo, aquele nome sintetizava um ideal construído no âmago de sua solidão. Um ideal de reencontro com as tardes de correria pelos quintais de chão batido; os banhos de rio entre meninos e peixes; a varanda da casa iluminada pela pálida luz da lua; o pai jogado no fundo da rede. O pai. Ela buscava o pai no homem por trás do nome. Orimar. Mas Orimar jamais teria mãos para enxugar as próprias lágrimas.Não havia poder algum naquelas mãos. Talvez ele não tivesse força nem para lágrimas. Ele era fraco.


Por isso ela não pediu à lua que Orimar voltasse naquela noite, mas no fundo esperava por ele com uma viciada espera pela droga. Esperava seus passos na escada; seus olhos a evitá-la; sua arrogância incontida; e, sobretudo, ela esperava por sua crueldade. Sua crueldade que mesmo agora, tombado como um cadáver no sofá, ele exercitava absoluto. Por um momento pensou em matá-lo. Sim. Poderia matar facilmente aquele homem fraco, mas o pensamento era demasiado, artificial. Ela era muito forte para a crueldade. Herdara além de uma versão intima sobre o fim de Bienvenido, as mãos poderosas do pai. Mãos que trariam o ventilador para a sala. Cobririam o corpo sujo de Orimar. Mãos que enxugariam as próprias lágrimas.